O conceito de Kiai – 氣合5

KIAI
Kiai em kanji
Kiai em kanji
Kiai não deve ser traduzido como “união dos espíritos” e nem “grito do espírito” ou “espírito em forma de grito”. Como expliquei na aula de etiqueta e princípios, kiai [氣合] pode ser feito sem som. A tradução mais próxima desta expressão seria “focalizar a energia vital” [氣=ki / 合=ai], a ideia é conduzir o efeito do movimento da energia emocional/vital para o adversário ou o alvo, através da concentração desse efeito num único ponto, no instante exato do kime [uso correto da potência muscular]. Além disso, ki não pode ser materializado, pois não é energia da mesma natureza que a energia descrita na física. Energia é matéria. Portanto quando falamos em Ki, que é algo que pertence ao domínio de potentia (o nível de possibilidades descrito por Werner Heisenberg), ao sutil, e não ao domínio físico, imanente, falamos de algo que está além da experiência objetiva e externa.
Vale lembrar também que Awazu é outra palavra [合う], não é sinônimo exato para Ai.
União, na cultura japonesa, como a ideia de unir mente e corpo por exemplo, como na yoga, é expresso pelo conceito “toitsu” [統一], literalmente “tornar uno”. União no sentido de “centrado” ou “inteiro” é expresso pelo conceito de “musubi” [結び].
O espírito, na cultura japonesa, tem pelo menos três representações: tamashii [魂 - alma], konpaku [魂魄 - mônada] e kokoro [心 - consciência/coração]. Existe ainda a ideia de espírito, não como algo “espiritual”, mas no sentido de “estado de ânimo”, e pra essa expressão o conceito japonês é o de seishin [精神], como quando dizemos “hoje vou usar o espírito guerreiro” [bushi no seishin].
O conceito de energia vital, Ki – 氣
Ki é explicado como o movimento do denso (matéria) para o sutil (potentia) e sua grafia tradicional mais conhecida é uma imagem do vapor (气) subindo do arroz (米) enquanto cozinha, ou seja, o movimento entre o denso (arroz, material) e o sutil (vapor, transcendente), então ki é algo que está entre a matéria e o espírito, não é o espírito em si, mas o movimento entre eles.
Por tudo isso Kiai não pode ser “união dos espíritos”. Simplesmente é comum entre os professores de artes marciais pegar um conceito popularizado como esses aqui comentados e ao darem uma olhadinha nos kanji, distorcerem os conceitos para algo que apóia a ideia errada compartilhada pelo senso comum.
KIME
O conceito de Kime – 決め
Kimeru - Definir
Kimeru – Definir
Kime é muitas vezes tratado como “potência”, a capacidade de nosso corpo gerar contração muscular, e com isso força, num pequeno espaço de tempo. Kime, em Karate-Dō, porém, é algo mais complexo, e apresentarei aquia fala do grande atleta e professor Luca Valdesi, da Itália, com quem treinei no início de 2011.
Explica Valdesi sensei que o Kime é uma forma particular de usarmos a força. É a capacidade de focalizarmos nossa ação, e realizarmos a máxima contração muscular possível, com todo nosso corpo, no menor instante possível, e coincidindo com o momento em que a técnica está em sua “posição final”, ou de arremate, de conclusão. Seria como compararmos nosso soco com uma arrancada de um carro. Para socar, nosso corpo precisa estar relaxado, senão já está gastando energia que poderia ser usada na contração máxima do final, então arremetemos contra um alvo com toda velocidade possível, mas sem tensões desnecessárias. Então quando a mão que soca chega à posição final, de impacto contra um alvo, aí sim ocorre o Kime, ou seja, a contração máxima de todos os grupos musculares no menor instante possível, transferindo o máximo dano ao adversário. A comparação com a arrancada de um carro seria de que é como quando vemos um carro arrancar com toda velocidade ao abrir o sinal (início do soco) mas frear bruscamente com tudo que pode para não bater em um muro logo depois (Kime).
Valdesi sensei também chamou atenção de que podemos pensar um pouco também na ideia de “ki”, onde meu corpo permanece equilibrado e imóvel, quando o soco é bem executado com Kime, e paramos após nosso punho entrar um pouco na superfície do corpo do adversário, mas a força empregada e a energia intrínseca (Ki) seguem sendo transferidos para o corpo do adversário, causando o maior dano possível. No link abaixo, Valdesi sensei executa um bom kata com a demonstração perfeita do ótimo uso do kime:
OSU NO SEISHIN [押忍の精神]
Osu no seishin kanji
Osu no seishin kanji
O comportamento opressor não deve ser confundido com a rispidez moderada usada por inúmeros professores de Caminhos “Dō”. Há certos comportamentos rígidos que tem a ver com a ideia de “Compaixão Raivosa” oriunda do budismo. A compaixão raivosa é uma das cinco formas de compaixão (acolhimento com ternura, propiciar meios, despertar a coragem, impedir a negatividade e amor) segundo essa tradição, e sua forma é exemplificada pela metáfora da mãe que ralha com o filho pequeno que estava a ponto de puxar o cabo de uma panela sobre o fogão com cozido quente. A mãe, nessa situação, fala agressivamente com a criança, mas sua intenção é protegê-la das queimaduras, impedindo um acontecimento negativo.
Por essa razão, muitos Dōjō expõe um quadro com os ideogramas 押忍の精神 – espírito do Osu. Osu remete à ideia de que nos esforçaremos a cada instante mesmo sob o pesado treinamento e o “clima” de luta que paira no Dōjō. Também os militares japoneses (especialmente da Marinha) usavam o Osu como saudação, para honrar seu compromisso com o “espírito guerreiro” e se manterem focados no objetivo delineado. Além disso é uma saudação que se tornou corrente entre grupos de jovens japoneses (especialmente do sexo masculino) com o intuito de reforçar a “masculinidade”.
Obviamente nossa realidade não é a mesma do Japão, mas devemos estar atentos e ter amor próprio. A atitude descortês de muitos professores não é apropriada a um professor de Karatedō, e é preciso haver um equilíbrio entre autoridade e cortesia constantes. Muitas vezes confundimos a atitude de homens que acham que o Dōjō é uma extensão de suas experiências no exército ou ainda assistindo a filmes de guerreiros espartanos ou da idade média como sendo o comportamento adequado ao “Guerreiro Samurai”, e isso está muito longe da realidade.
Karatedō deve ser alicerçado em respeito, e ele começa, sem sombra de dúvida, no exemplo dado pelo Sensei o tempo todo, respeito é algo que precisa transparecer, emanar das atitudes do professor. O desenvolvimento do caráter no Karatedō, que está gravado no Dōjōkun (os axiomas que definem as “regras do Dōjō”), é um elemento básico que não deve estar só num quadro da parede, deve estar nas pessoas. Como nos lembra a antropóloga americana Angeles Arrien (em O Caminho Quádruplo), o Guerreiro é aquele arquétipo (tema, símbolo, do grego “modelo antigo”) cujas atitudes e a disciplina estão alinhadas com suas palavras, ações e valores. A cortesia e o respeito precisam estar presentes em todos no espaço de prática, e outras formas de comportamento são distorções do que se espera da etiqueta japonesa. O comportamento dos alunos também se distorce bastante por aqui. Afinal, já que pagamos o professor que faça nossas vontades! É o que muitos jovens tem pensado. Na verdade temos de ficar alertas a coisas simples como as decisões do professor sobre nosso avanço, e o exame de graduação é um bom exemplo. Nos esforçamos no treino para que o professor, reconhecendo que somos competentes, nos autorize a fazer o exame de graduação, sem nunca pedir pra fazer isso! Muitas dessas atitudes básicas não são seguidas pelos alunos da geração atual, devemos estar atentos ao espírito do Dojo.